PARTE II

Combate ao
desmatamento

As cadeias agroalimentares frente ao problema do desmatamento: atores, regulações e tendências


O olhar geoespacial, e as conclusões da análise dos efeitos da expansão e intensificação de algumas culturas agrícolas incluídas na primeira parte, permite revelar a dinâmica da ocupação do território. A principal conclusão é que, mesmo com o grande aumento de produtividade observado nas últimas décadas, a incorporação de terras para a produção agrícola ainda ocorre no Brasil, levando a constatação de que os processos de expansão de área e de intensificação produtiva ocorrem de forma simultânea no território. Se há terras disponíveis, a área de produção se expandirá. O caso da bovinocultura é emblemático. Como mostra a análise, ela se intensifica apenas em áreas consolidadas, mas se extensifica em regiões de fronteira. O efeito Jevons não é observado porque a pecuária tem essa característica de extensificação sem o aumento da produtividade. O efeito estável é observado porque ainda há terra para a expansão. No entanto, a tendência é que com o passar do tempo o efeito Borlaug seja observado.


A expansão agrícola é reconhecida como um importante fator de perda florestal nos trópicos. No entanto, faltam dados precisos sobre a ligação direta entre a agricultura e o desmatamento tropical. Pendrill et al. (2022) sintetizaram pesquisas e conjuntos de dados existentes para quantificar até que ponto o desmatamento tropical de 2011 a 2015 foi associado à agricultura. Os autores estimaram que pelo menos 90% das terras desmatadas ocorreram em paisagens onde a agricultura provocou perdas florestais, mas apenas cerca da metade foi convertida em terras com produção agrícola. A disponibilidade de dados e as tendências variam de região para região, sugerindo ligações complexas entre agricultura e perda florestal, incluindo a expectativa de valorização que irá depender, em última análise, da renda a ser gerada a partir do uso que se dará para a área que foi desmatada.


Os autores concluem que, embora desempenhem um papel importante, as iniciativas públicas e privadas que tentam eliminar o desmatamento - nos países produtores - das suas cadeias de suprimento possuem uma capacidade limitada. Entre um terço e metade do desmatamento não ocorre em terras efetivamente agrícolas, em produção (Pendril et al., 2022). Além disso, a maioria - cerca de três quartos - da expansão da agricultura em florestas é impulsionada pela demanda interna nos países produtores, especialmente de carne bovina e cereais, incluindo grande parte do desmatamento em todo o continente africano (Pendrill et al., 2022). Estes dados sugerem que o potencial de medidas internacionais para regular cadeias de fornecimento, sobretudo de commodities, para ajudar a reduzir o desmatamento tropical é complementar, mas não suficiente. Segundo os autores, o efeito necessário na redução do desmatamento é mais provável de ser alcançado através de intervenções em áreas de risco de desmatamento que se concentram no fortalecimento do desenvolvimento rural sustentável e da governança territorial. Para que tal resultado ocorra, é necessário entender como os atores públicos e privados, ao longo das cadeias, têm interagido - e como têm sido pressionados - para desenhar e implementar possíveis soluções. As próximas seções buscam lançar luzes sobre essas relações, apresentando importantes abordagens teóricas que tratam da dinâmica entre o desmatamento e a produção agrícola, sobretudo de commodities.

As relações intra e inter atores nas cadeias agroalimentares

A vertente de pensamento analítica denominada SAG - Sistema Agroalimentar, desenvolvida por pesquisadores do PENSA - Programa dos Estudos de Negócios do Sistema Agroalimentar da Universidade de São Paulo, é bastante útil para os propósitos deste estudo. Esta abordagem é aderente ao conceito de cadeias produtivas, porém envolve outros elementos além da cadeia vertical como o ambiente institucional e organizacional (Castro, 2001).

Zylbersztajn (2000) ressalta as distinções entre cadeias e sistema agroalimentar, considerando este último como um conceito mais amplo, que envolve o ambiente institucional e as organizações de suporte. Sob esta ótica, o autor revela que o SAG é visto como um conjunto de relações contratuais entre empresas, cujo objetivo é a disputa do consumidor de determinado produto. Portanto, o SAG pode ser visto como um fluxo, amparado pelo ambiente institucional que são as regras da sociedade representadas pelas leis, tradições e costumes e pelo ambiente organizacional que são estruturas criadas para dar suporte ao funcionamento dos SAG.


Nesta lógica de pensamento, percebe-se um esforço na definição de uma proposta conceitual para o sistema agroalimentar, incorporando a inclusão de elementos que possibilitem uma melhor compreensão e análise das organizações do agronegócio. Os agentes que atuam nos SAG mantêm uma relação de cooperação e de competição, cujas relações mudam ao longo do tempo, seja por aspectos externos ou por mudanças na tecnologia. Para Zylbersztajn (2000), esta rede de relações não pode ser entendida como linear, mas como uma rede de relações composta de vários agentes que mantém contatos entre si, sendo que o aperfeiçoamento dessas relações poderá tornar a arquitetura do sistema agroalimentar mais ou menos eficiente.

A dinâmica do desmatamento e produção agrícola

O Brasil desempenha importante papel na produção, bem como na exportação de commodities agrícolas. No intervalo de poucas décadas o país deixou de ser deficitário na produção de alimentos para tornar-se um dos maiores exportadores do mundo (Vieira et al. 2019). No entanto, o desempenho desse sistema agroalimentar tem custado a expansão crescente das fronteiras agropecuárias sobre enormes áreas de vegetação nativa, causando não apenas o desmatamento, mas outros impactos ambientais tão graves quanto (Abramovay, 2021), como a escassez de água e assoreamento de rios (Fearnside, 2005; Hunke et al., 2014; Bolson, 2018; Guidotti et al., 2020), a contaminação por agrotóxicos (Bombardi, 2012; Pignati et al., 2017; Rekow, 2019), a perda de insetos polinizadores (Priess et al., 2007) e de espécies endêmicas que dependem dos ecossistemas para se reproduzir e se alimentar (Vynne et al., 2010; WWF, 2015), e a redução do estoque de carbono devido à perda de biomassa (Salati & Nobre, 1991; Nogueira et al., 2018; Roitman et al., 2018; Silva, 2018). Além dos efeitos ambientais, o avanço da produção de commodities também gera impactos socioeconômicos como a alta concentração de recursos financeiros e fundiários (Pita, Boechat & Mendonça, 2017; Favareto et al., 2019; Guedes Pinto et al., 2020; Rajão et al., 2020). Esta dinâmica de concentração de riqueza tem um impacto notável no desenvolvimento regional dos municípios produtores (Heredia, Moreira & Leite, 2010), que se transformam em ilhas de produção com uma economia pouco dinâmica e diversificada (Favareto et al., 2022; World Bank, 2021).


A revisão da literatura sobre as cadeias agroalimentares selecionadas para este estudo mostrou que existem duas importantes narrativas que dialogam sobre a relação entre produção de commodities agrícolas e o desmatamento. A primeira, reforça que não é necessário expandir a atividade agrícola para novas áreas, mas sim, ocupar aquelas que já foram convertidas, sobretudo as áreas de pastagens degradadas. Os estudos que sustentam essa narrativa questionam: i) a eficiência das políticas em vigor e destacam a fragilidade da legislação ambiental brasileira, como o Código Florestal (Sparovek et al., 2012; Trase, 2019; Rajão et al., 2020); ii) o monitoramento de áreas onde ocorrem as atividades agrícolas (Fearnside, 2005), e; iii) a insuficiência dos mecanismos de mercado, como a Moratória da Soja na Amazônia (Carvalho et al., 2019; Lima et al., 2019; Waroux et al., 2019). Nesse sentido, diversas pesquisas têm reforçado a necessidade de políticas que incentivem e exijam a redução do desmatamento atrelado a mecanismos mais eficientes de rastreabilidade e transparência das cadeias de valor de commodities como a soja e a carne bovina (Fearnside, 2005; Angelsen, 2010; TNC, 2019; Ferguson, Sekula & Szabó, 2020; Rajão et al., 2020; Reis et al., 2020).


Já a segunda narrativa sugere melhorias na atividade agropecuária, o uso da agricultura regenerativa e de novas tecnologias, como: i) a intensificação (Cerri et al., 2018; Vieira Filho, 2018) e o aumento da produtividade com baixo custo (Saath & Fachinello, 2018; TNC, 2019); ii) o uso de indicadores de sustentabilidade (Agol et al., 2014), mecanismos de mercado, como Pagamentos por Serviços Ambientais (PSA) (TFA, 2020), sistemas de rastreabilidade e certificação (Brancalion et al., 2017; Ingram et al., 2018; Ferguson, Sekula & Szabó, 2020) e investimentos em Reservas Particulares do Patrimônio Natural (RPPN) (Negrões et al., 2011; Lima & Franco, 2013), e; iii) a implantação de sistemas integrados como Lavoura-Pecuária-Floresta (ILPF) (Balbino et al., 2012; Cerri et al., 2018) e a promoção da assistência técnica aos pequenos produtores rurais (Brancalion et al., 2017; Stabile et al., 2020). Além disso, destaca a necessidade de regularização fundiária para reduzir a grilagem e a especulação fundiária (Carvalho et al., 2019; Stabile et al., 2020).


A evolução da dinâmica da produção e do desmatamento, ao longo das últimas três décadas, impulsionou a elaboração e implementação de protocolos e acordos, visando responder à expansão da conversão de áreas com vegetação nativa. A análise destas experiências colabora para a conformação de um quadro de análise que busca identificar as lacunas existentes em sua implementação.

O ambiente institucional e a tendência de mercado

Regulações nacionais e internacionais


No contexto em que estão inseridas as cadeias agroalimentares focalizadas neste estudo existem ações de grupos sociais e governos no sentido de regular as transações considerando as questões sociais e ambientais.


No âmbito nacional, o Código Florestal é a principal regulação que incide sobre a conservação da vegetação nativa em propriedades privadas. Ela estabelece um percentual mínimo de área preservada, denominado reserva legal. A porcentagem varia de acordo com o tipo de vegetação e localização. Varia de 20% (por exemplo, no Cerrado) a 80% (por exemplo, na Amazônia Legal). Além disso, o Cadastro Ambiental Rural (CAR) impõe o registro de todos os limites das fazendas, o que facilita o monitoramento do cumprimento do Código Florestal.


O cumprimento do Código Florestal é baseado no CAR e nos Programas Estaduais de Conformidade Ambiental (PRA), que podem distinguir a conversão ilegal da legal, fiscalizando e sancionando a conversão de novas áreas sem autorização prévia. Os produtores rurais com déficit ambiental em suas propriedades podem utilizar essas áreas desde que recuperem parte delas e não convertam nenhuma outra vegetação nativa em pastagens ou plantações. Cabe destacar que a recuperação de pastagens e a implantação de áreas de Integração Lavoura-Pecuária-Floresta são ações vinculadas à agricultura de baixo carbono.


No entanto, autores como Guedes Pinto et al. (2018) e Rajão et al. (2021) afirmam que apesar da importância do Código Florestal para a economia e para a conservação, sua regulamentação e implementação possuem sérios atrasos. Um dos maiores gargalos está relacionado ao cadastramento, bem como validação dos CAR, visto que são auto declaratórios.


Já na esfera internacional, as principais discussões estão em torno das Propostas Legislativas da União Europeia e do Reino Unido para conter o desmatamento importado associado a commodities agrícolas. Embora as propostas sejam de abrangência doméstica, elas têm o potencial de gerar impactos transfronteiriços, influenciando as políticas dos países exportadores e as práticas das operadoras multinacionais. De um lado, existe a expectativa de que essas legislações auxiliem na elaboração de políticas mais restritivas, mas, que por outro lado, podem acarretar o aumento dos custos e/ou no boicote comercial.


Diversas discussões têm ocorrido, tanto no âmbito internacional quanto internamente, para entender em que medida essas propostas afetarão as cadeias produtivas brasileiras. Ambas as legislações poderão gerar resultados positivos no Brasil, ao conseguir dissociar o comércio de commodities e o desmatamento. Contudo, a abrangência e o grau de eficiência dos regulamentos ainda são incertos, já que nem UE nem Reino Unido são o principal parceiro comercial do Brasil para a maioria das commodities negociadas. Segundo dados do SisComex (2022), em 2021, a participação da carne bovina brasileira no mercado da UE foi de apenas 8,26%, enquanto 44% foram para a China. No caso da soja, as exportações para a UE ultrapassaram os 15%, sendo o maior percentual, mais uma vez, negociado com a China com quase 58%.


Outra articulação que tem ocorrido no cenário internacional é um projeto legislativo, proposto pelos Estados Unidos, intitulado Forest Act 2021, com o objetivo de impedir a importação de produtos como soja, cacau, gado, borracha, óleo de palma, madeira e seus derivados de países com altas taxas de desmatamento. Caso o produtor rural e/ou o importador americano não consigam comprovar que a origem desses produtos, bem como de toda a sua cadeia produtiva, seja de áreas livres de desmatamento ilegal, sua importação será barrada. Além disso, destaca-se a expansão da cadeia de proteínas alternativas como mais um componente a ser considerado em toda essa equação.

Conclusões

De maneira geral, cada elo das cadeias agroalimentares analisadas neste estudo sente, em maior ou menor grau, a pressão de outros grupos de atores para endereçar a problemática do desmatamento. Os elos finais representados pelos processadores e distribuidores têm maior visibilidade por sua associação mais direta com o consumidor, especialmente os que possuem relações comerciais com o mercado europeu, considerado mais exigente no cumprimento dos quesitos socioambientais.


Estes dois elos, por sua vez, têm dialogado e articulado constantemente com os produtores rurais, visto que são considerados como os grandes vetores das transformações direcionadas ao combate do desmatamento. Contudo, especula-se que as altas exigências vindas dos importadores e consumidores europeus podem gerar relevantes impactos para as cadeias de fornecimento no Brasil, já que o processo de adequação às normas é considerado bastante oneroso. Outros stakeholders das cadeias de valor também têm ressaltado que com essas novas regulações, alguns setores produtivos não terão outra opção senão buscar mercados menos restritivos. E nesse sentido, a China tem se mostrado um dos maiores players nessas cadeias, sobretudo de soja e carne bovina, por ainda não possuir regras de importação que restrinjam produtos associados ao desmatamento.


Se por um lado o mercado europeu tem exercido forte pressão para que critérios socioambientais sejam implementados e cumpridos, haja vista as propostas de legislações de importação de produtos livres de desmatamento em curso - desde o processo de produção até a importação de produtos oriundos do Brasil - de outro, tanto o mercado interno quanto o asiático, principalmente o chinês e do oriente médio, acabam não tendo esse mesmo rigor. O maior balizador comercial é o preço, tanto no comércio doméstico, como na exportação. Essa explicação ainda tem servido como argumento de uma parte do setor produtivo em preferir negociar com esses mercados, pela pouca exigência de critérios como o combate ao desmatamento, inclusive ilegal.


A comunicação e a linguagem utilizadas nos diferentes elos das cadeias também estão entre os fatores que têm contribuído para que as boas experiências não sejam multiplicadas com maior facilidade. Os termos utilizados – e o entendimento sobre eles – no que se refere ao desenho das estratégias de combate ao desmatamento não são comuns entre os atores. Essa realidade tem impactado a construção de uma narrativa mais homogênea dentro da cadeia. O resultado é uma insuficiente articulação dos diversos elos das cadeias. É verdade que muito tem sido feito, por diferentes atores, em prol da conservação da vegetação nativa. Mas, a continuidade e o melhoramento dessas iniciativas, muitas vezes desenvolvidas e implementadas de maneira individualizada, precisa ser compartilhada e pactuada pela cadeia toda.

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