Este artigo não reflete posições do CEBDS. Seu objetivo é resumir os principais pontos do workshop e relatório aos quais se refere para facilitar a compreensão geral.

 

Entre solucionar a crise de biodiversidade e a crise climática, ou se enfrentam ambas ou nenhuma será resolvida

 

As mudanças climáticas e a perda de biodiversidade emergem como dois dos principais desafios da humanidade na atual crise sistêmica na qual nos encontramos. Apesar de cientistas e tomadores de decisão até reconhecerem a interconexão entre estes desafios, eles são abordados separadamente na grande maioria dos casos. Sendo a natureza um sistema complexo, o seu manejo/gestão otimizado simplesmente não acontece se feito com base em partes isoladas. Considerando sinergias e trade-offs[1], existem ações que beneficiam tanto a mitigação dos efeitos das mudanças do clima quanto a biodiversidade simultaneamente, e ações que ao atuarem para um fim acabam afetando negativamente o outro. Daí a importância de uma abordagem inclusiva, considerando ações para mitigação e adaptação às mudanças climáticas juntamente às ações de conservação e restauração da biodiversidade.

Em um workshop virtual realizado em conjunto pela Plataforma Intergovernamental sobre Biodiversidade e Serviços Ecossistêmicos (IPBES) e pelo Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas (IPCC) entre 14 e 17 de dezembro de 2020, os participantes exploraram as sinergias e trade-offs envolvendo a proteção da biodiversidade e mitigação e adaptação às mudanças climáticas. O objetivo e foco do evento incluíram considerações quanto a:

  • Os impactos das mudanças climáticas sobre a biodiversidade
  • A capacidade das espécies de se adaptarem às mudanças climáticas (incluindo limitações)
  • A resiliência dos ecossistemas diante das mudanças climáticas considerando limiares para mudanças irreversíveis
  • A contribuição dos ecossistemas para feedbacks climáticos[2] e mitigação, tendo em vista um histórico de perda contínua de biodiversidade e os riscos associados às espécies-chave e serviços ecossistêmicos

Em junho de 2021 foi divulgado um relatório sintetizando os principais resultados do workshop, e que contém informações relevantes para a implementação do Acordo de Paris, do Marco Global de Biodiversidade pós-2020 e dos Objetivos para o Desenvolvimento Sustentável (ODS). Seus principais pontos considerando os impactos e dependências dos negócios em relação à natureza estão resumidos abaixo.

A capacidade de adaptação da maioria dos sistemas socioecológicos e ecossistemas (principalmente os mais sensíveis como recifes de coral, florestas tropicais e áreas costeiras) será ultrapassada devido às mudanças climáticas não-mitigadas oriundas da atividade humana. Significativa capacidade de adaptação será necessária para enfrentar as mudanças climáticas residuais mesmo que os cenários de redução ambiciosa de emissões de gases estufa se materializem. Por isso é crucial a manutenção da elevação da temperatura em muito menos de 2° C em relação a níveis pré-industriais (1850-1900)

Os mecanismos de reciprocidade envolvendo as mudanças climáticas e a perda de biodiversidade implicam que soluções satisfatórias para um desafio dependem de considerações sobre o outro. Se ignorarmos a natureza inseparável entre o clima, a biodiversidade e a qualidade de vida humana no planejamento e implementação de ações e políticas para as crises que afetam cada uma destas esferas, arriscamos investir em soluções pouco efetivas. O ‘sistema clima-biodiversidade-sociedade’ implica um nexo melhor abordado a partir da perspectiva de sistemas socioecológicos, possibilitando a consideração de trade-offs, feedbacks, efeitos limiares e relações não-lineares entre variáveis sociais e biofísicas através de escalas espaço-temporais – além de gestão adaptativa, muito importante na identificação de como abordagens holísticas e seus objetivos associados podem ser encorajados, planejados, implementados, monitorados e alcançar maior escala

A pressão sobre a biodiversidade segue crescendo como resultado de ameaças que se multiplicam, diversificam e interagem entre si. Estas ameaças emergem da crescente demanda social e econômica sobre a natureza, impulsionada pelos níveis altíssimos de consumo de energia e materiais – particularmente em países desenvolvidos. Assim, esta demanda vai continuar a crescer a não ser que seja explicitamente abordada por políticas específicas que sejam inclusivas às considerações de equidade no que diz respeito à uma boa qualidade de vida para todos

Sob os efeitos da perda de biodiversidade e das mudanças climáticas, limiares cruciais (ou pontos de não retorno, os tipping points) trazem consequências drásticas para as pessoas e para a natureza. Contudo, intervenções catalizadoras sociais positivas podem auxiliar no alcance de interações desejáveis entre a biodiversidade e o clima. Por exemplo, cidades ‘carbono-neutro’[3], a extinção de subsídios para combustíveis fósseis, o fortalecimento de educação ambiental e climática, o engajamento da sociedade no planejamento e implementação de planos e estratégias transetoriais almejando a resiliência socioambiental. Dar escala a estas intervenções envolve considerações quanto às estruturas de poder e rigidez típicas dos contextos de tomada de decisão nas esferas política e econômica, e pode implicar mudanças mais profundas como nos valores individuais e sociais perante a natureza

Apesar da existência de soluções integradas em termos de benefícios climáticos, sociais e para a biodiversidade, a sua governança e financiamento permanecem como desafio. Iniciativas inovadoras, como abordagens jurisdicionais, articulações experimentais de políticas e abordagens com base nos direitos (do inglês rights-based apporaches) emergem como alternativas promissoras para destravar a generalização de considerações climáticas em políticas de biodiversidade e vice-versa, e de ambas em iniciativas que avançam o desenvolvimento humano e promovem uma boa qualidade de vida para todos. Nesse contexto, ambientes colaborativos e que contam com o engajamento de atores diversos, respeito por valores plurais, inclusão de diferentes formas de conhecimento e saberes, governança policêntrica, e a superação de relações desiquilibradas de poder são elementos importantes para a solução do desafio de governança, bem como para a urgente necessidade de mudanças transformadoras

 

O alcance das transformações necessárias, em escala e escopo, de modo a atingir metas climáticas, de biodiversidade e de desenvolvimento simultaneamente será totalmente dependente de ações cujas velocidade e abrangência são de uma natureza nunca antes empreendidas pela humanidade.  Estas transformações podem ocorrer a partir de pontos de alavancagem que incluem a exploração de visões alternativas no que diz respeito ao que é uma boa qualidade de vida, aos padrões de consumo, ao desperdício, às práticas de descarte, aos valores da relação que os seres humanos estabelecem com a natureza, à redução da desigualdade, e ao acesso à educação e ensino. Os impactos da crise do COVID-19 enfatizam a importância de um futuro nem tão distante que seja mais resiliente e sustentável, sem deixar ninguém para trás

Práticas sustentáveis nas atividades agropecuária e de silvicultura têm o potencial de melhorar a capacidade adaptativa, fortalecer a biodiversidade, aumentar o armazenamento de carbono em terras agrícolas, solos e vegetação florestais ao mesmo tempo em que diminuem as emissões de gases-estufa. Elas incluem diversificação de plantações e agroflorestas, por exemplo, e trazem maior resiliência diante de eventos climáticos extremos como secas prolongadas e surtos de doenças e pragas que se tornam cada vez mais frequentes conforme o clima esquenta

O sistema alimentar global corresponde a aproximadamente 1/3 das emissões de gases-estufa ao considerarmos emissões pré- e pós-produção, e é também um dos principais vetores de perda de biodiversidade. Os benefícios tanto climáticos quanto para a biodiversidade de intervenções na produção de alimentos, ração animal, fibras e bioenergia são otimizados por intervenções que incluem ações, iniciativas e políticas que afetam a demanda por estes produtos: por exemplo, a redução de perdas e desperdício de alimentos e mudanças nos hábitos alimentares em direção a dietas mais baseadas em plantas – principalmente nos países mais ricos. Na verdade,  benefícios significativos para a biodiversidade e para a saúde humana emergem se mudanças na dieta têm como objetivo maior uma maior equidade global em termos de saúde, levando à uma redistribuição nos padrões de consumo que tem o potencial de reduzir, ao mesmo tempo, os índices de subnutrição, perda e desperdício de alimentos, sobrepeso e obesidade

As lavouras destinadas à produção de bioenergia/biocombustíveis (por exemplo, cana-de-açúcar para obtenção de etanol) operando em sistemas de monocultura em áreas extensas são prejudiciais aos ecossistemas, reduzem  serviços ecossistêmicos e impedem o alcance de muitos dos ODS. O uso de fertilizantes e pesticidas pode levar à poluição do solo e de corpos d’água incluindo o ambiente marinho, e há também elevada demanda por água para o cultivo – além da competição por espaço. Estes são alguns dos impactos negativos das monoculturas voltadas para bioenergia que limitam a capacidade humana de adaptação aos efeitos das mudanças climáticas. Assim, juntamente à diminuição significativa de emissões de gases-estufa oriundas da queima de combustíveis fósseis como parte do portfólio global de mitigação das mudanças climáticas, níveis menos agressivos de utilização de lavouras dedicadas à produção de bioenergia/biocombustíveis podem implicar benefícios tanto para adaptação às mudanças climáticas quanto para a biodiversidade

É necessário dar escala a um novo paradigma de conservação da biodiversidade, com o objetivo de atingir simultaneamente um clima habitável, uma biodiversidade autossuficiente, e boa qualidade de vida para todos. Por exemplo, através de paisagens multifuncionais que integram a) a biodiversidade funcionalmente intacta com a provisão de benefícios materiais, imateriais e regulatórios e são inclusivas de redes de áreas protegidas[4] e corredores ecológicos; b) as paisagens modificadas pelo uso humano; e c) ecossistemas profundamente modificados (como áreas urbanas e áreas agrícolas sob manejo intensivo). O sucesso e sustentabilidade de paisagens multifuncionais é dependente do planejamento equitativo e participação iterativa das comunidades locais no seu desenho e implementação de forma a enraizar as soluções potenciais na economia local; bem como da consideração das necessidades, características e relações políticas específicas

Ações de manejo para a conservação têm, em geral, mais benefícios mútuos do que trade-offs em relação às ações para mitigação e adaptação às mudanças climáticas, mas existem exceções que não devem ser desconsideradas. Além disso, estes benefícios dependem fortemente dos biomas, usos do ecossistema, interações setoriais e da escala considerados. De qualquer forma, cada iniciativa local importa e faz diferença em nível global. Por exemplo, a restauração de manguezais em áreas urbanas costeiras atende a múltiplos objetivos climáticos e de biodiversidade simultaneamente. Nesse contexto, compensações de biodiversidade[5] (do inglês biodiversity offsets) podem introduzir a flexibilidade necessária para o alcance de múltiplos objetivos que são muitas vezes conflitantes, em escala regional, se utilizadas sob condições e exceções muito bem delineadas

Quanto a ecossistemas ricos em espécies e que também armazenam grandes quantidades de carbono tanto no ambiente terrestre quanto nos oceanos (e.g. florestas, áreas úmidas terrestres e costeiras, florestas de algas, etc..), evitar e reverter os impactos da degradação – restaurando estes ecossistemas quando degradados – são ações cruciais para a proteção da biodiversidade e seus benefícios que também contribuem para a mitigação e adaptação às mudanças climáticas

O plantio de árvores em ecossistemas historicamente não-florestais e o reflorestamento baseado em uma única espécie – especialmente se exótica – até podem contribuir para mitigação das mudanças climáticas em um primeiro momento, mas são prejudiciais à biodiversidade não possuem benefícios claros para a adaptação às mudanças do clima

Intervenções que visam facilitar adaptação a um efeito isolado das mudanças climáticas sem considerar outros aspectos em termos de sustentabilidade podem revelar-se prejudiciais e apresentar resultados danosos. Por exemplo, o aumento da capacidade de irrigação em áreas agrícolas agora sujeitas a secas prolongadas, mais frequentes e mais intensas pode levar a conflitos quanto ao uso da água e ao aumento da salinidade de corpos d’agua e do solo que, aliados à poluição por pesticidas e fertilizantes, trazem efeitos nocivos à biodiversidade – e aos humanos também. Portanto, é preciso levar em consideração também os resultados não-planejados das intervenções possíveis, bem como a incerteza característica das mudanças do clima. Daí a importância da utilização de ferramentas e metodologias de gestão adaptativa de risco

Intervenções tecnológicas efetivas para a mitigação das mudanças climáticas podem representar riscos sérios para a biodiversidade – por exemplo, energias renováveis que dependem da disponibilidade de minerais críticos, atualmente não apresentam alternativas ‘limpas’ para descarte dos materiais associados à produção e cuja infraestrutura pode ser prejudicial à migração de algumas espécies. Assim, para efetividade holística de infraestrutura destinada à mitigação dos efeitos e adaptação às mudanças climáticas, considerações em economia circular e biodiversidade são indispensáveis

Ambos sistemas terrestres e marinhos contam com opções já existentes para combinar intervenções baseadas na natureza e intervenções baseadas em tecnologia para mitigação e adaptação aos efeitos das mudanças climáticas, com contribuições para a biodiversidade. Por exemplo, a vegetação rasteira em fazendas solares pode beneficiar polinizadores, importantes para áreas de produção agrícola adjacentes. Turbinas eólicas offshore podem criar recifes artificiais, impactando positivamente a biodiversidade marinha

As soluções baseadas na natureza (SBN) têm potencial de exercer papel fundamental na mitigação e adaptação aos efeitos das mudanças climáticas, bem como beneficiar a biodiversidade e os serviços ecossistêmicos – principalmente em áreas urbanas. Contudo, a efetividade das SBN é totalmente dependente de ações simultâneas para a redução drástica de emissões de gases-estufa com origem na atividade humana, bem como da longevidade das intervenções (ou seja, pouco efetivas se focadas em rápida captura de carbono a curto prazo). Compensações de carbono[6] nesse contexto emergem como desafios crescentes uma vez que ao invés de aumentar a ambição dos compromissos climáticos associados, correm o risco de distrair o público da urgência da redução imediata das emissões de gases-estufa. Trata-se de uma jogada arriscada uma vez que SBNs tendem a ser menos efetivas com a intensificação das mudanças climáticas.

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WBCSD destaques:

Nature Action project: para membros WBCSD interessados que queiram uma visão mais clara, para negócios, de como soluções baseadas na natureza beneficiam a biodiversidade e natureza, além de oferecer valor climático, em saúde e social

The Taskforce on Nature-related Financial Disclosures (TNFD), que contribuiu junto ao Nature Action project na confecção do relatório Accelerating business solutions for climate and nature, vai fornecer uma framework às corporações e instituições financeiras para que possam avaliar, gerir e relatar suas dependências e impactos em relação à natureza

– Publicações:

-> Dasgupta Review – WBCSD business brief: síntese do relatório comissionado pelo Tesouro Nacional britânico para dar forma à resposta internacional à perda de biodiversidade e embasar a ação global a partir de contribuições de todos stakeholders. Descreve os custos ocultos do esgotamento do capital natural como o maior obstáculo para criação de valor a longo-prazo, propondo 3 transições abrangentes e interconectadas como soluções à crise sistêmica que vivemos. São elas o balanceamento das demandas da humanidade com o suprimento da natureza, aumentando o suprimento em relação aos níveis atuais; a alteração das atuais métricas de sucesso econômico; e, finalmente, a transformação de instituições e sistemas financeiros e educacionais

-> COVID-19: A Dashboard to Rebuild with Nature.  Propõe um ‘painel de controle’ baseado nos dois principais limites planetários da mudança climática e perda da natureza. Conclui que um sistema alimentar nature-positive é a maneira mais efetiva de construir resiliência contra choques futuros – inclusive pandemias

-> Accelerating business solutions for climate and nature. Esclarece definições no suporte do alinhamento entre Soluções Climáticas Naturais com Soluções Baseadas na Natureza para acelerar investimentos e escala. Auxilia, ainda, na navegação das agendas de natureza e climática ao mapear as principais iniciativas, plataformas e convenções para ação coletiva

 

Leia também:

O preço das dependências e impactos dos negócios em relação à natureza, uma síntese das publicações Recomendações para o escopo técnico da Força-Tarefa sobre Divulgação das Informações Financeiras relacionadas à Natureza (TFND) e Sumário das necessidades associadas ao escopo, governança, plano de trabalho, captação de recursos e comunicação propostos para a TFND (em inglês), produzidas pelo grupo de trabalho informal que deu início às atividades da TNFD.

Priscilla Santos
Assistente de Sustentabilidade voluntária – CEBDS

  1. Trade-offs dizem respeito às situações em que existem conflitos de escolha. Ou seja, estão relacionados com o resultado de uma escolha ao compararmos o que foi selecionado em detrimento daquilo de que se abriu mão.
  2. No contexto das mudanças climáticas, feedback loops trata-se de algo que intensifica ou desacelera tendências de aquecimento.
  3. Ser ‘carbono-neutro’ significa calcular o total das emissões de dióxido de carbono, reduzir onde é possível e balancear o restante através de compensação utilizando, por exemplo, o mercado de créditos de carbono.
  4. Extensão global ideal das áreas efetivamente protegidas estimada entre 30 e 50%, tanto em terra quanto no oceano. Porém, há variações regionais que precisam ser consideradas. De qualquer forma, são necessárias áreas muito maiores do que as atuais, e abordagens inovadoras. Por exemplo, a manutenção ou restauração de 20% de áreas profundamente alteradas pela atividade humana pode contribuir positivamente para a biodiversidade e o clima sem comprometer a segurança alimentar.
  5. Compensações de biodiversidade dizem respeito à prática de mitigação dos impactos nocivos de empreendimentos sobre a biodiversidade (por exemplo, mineração, crescimento urbano, etc..) através da restauração de biodiversidade. Em alguns casos,  implica áreas remotas pré-designadas para proteção, compensando os impactos do empreendimento.